O caos na criatividade
'Você é o
que você guarda': o lado acumulador de Pablo Picasso
Daisy Dunn
BBC Culture
'Você é o que você guarda': o lado acumulador de Pablo Picasso
Daisy Dunn
BBC Culture
Picasso teria pouco tempo para os ambientes elegantes e
minimalistas de hoje. Ele se cercou de confusão, considerando que mesmo os
itens mundanos e esfarrapados que outras pessoas jogavam fora podiam ter
interesse artístico. Ele guardava tudo: jornais velhos, pedaços de papel de
embrulho e envelopes usados, maços de cigarros, passagens de ônibus e
guardanapos de papel. Quando suas pilhas de papéis cresciam demais para os tampos
das mesas, ele as prendia com grampos e as pendurava no teto, como candelabros.
Quando morreu em 1973, aos 91 anos, ele já havia acumulado
milhares de objetos, alguns dos quais estão expostos na Royal Academy de
Londres como parte de uma exposição dedicada à paixão dele pelo papel. Trezentas obras de arte e itens de sua coleção, com mais de
80 anos, revelam a extensão de sua acumulação — e de sua visão.
Picasso gostava de bagunça. O estúdio na Villa La
Californie, em Cannes, na França, estava cheio de coisas — rolos de papel,
caixas e potes de tinta preenchendo todas as superfícies imagináveis, inclusive
as cadeiras.
Picasso gostava de bagunça. O estúdio na Villa La Californie, em Cannes, na França, estava cheio de coisas — rolos de papel, caixas e potes de tinta preenchendo todas as superfícies imagináveis, inclusive as cadeiras.
Getty Images - Picasso na Villa La Californie, em Cannes: local era cheio de
objetos
"Picasso disse certa vez: 'Você é o que guarda', e acho
que ele tinha muito senso de posteridade", diz Ann Dumas, co-curadora da
exposição Picasso e Papel. "Ele se preocupava muito com guardar e
registrar as coisas, então acho que isso fazia parte de sua definição da
própria identidade." Ele pegava os jornais e respondia às histórias publicadas
neles fazendo desenhos a lápis ou tinta. Havia pouco, de fato, que ele não
rabiscasse. Se uma folha de embalagem estivesse coberta por uma estampa ou
texto, ele desenhava sobre ela. Sua própria obra se fundia com a gravura até que as duas mal
se distinguissem. O efeito poderia ser cômico, como quando ele usou uma caneta
tinteiro para desenhar sobre a fotografia de uma modelo da Vogue e estendeu as
pernas dela para que saíssem por baixo do vestido de festa.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ MATHIEU
Auto-retrato (1918) a lápis e carvão está entre as exposições incluídas em Picasso e Papel na Royal Academy de Londres
Para muitos artistas, o caos significava criatividade e, em
seus tesouros, Picasso encontrou os objetos perfeitos para animar suas
naturezas-mortas. Seu amigo, o artista Georges Braque, geralmente é creditado
com a invenção da colagem moderna em Sorgues, ao norte de Avignon, em 1912. Mas
Picasso foi rápido em assumir a forma de arte.
Naquele ano, ele montou sua célebre Natureza Morta com a
Cadeira Caning, usando um pedaço de toalha de mesa para o assento da cadeira.
Sua genialidade era encontrar o objeto certo para cada espaço e manter a forma
enquanto perturbava o plano da imagem.
Em 1914, jornais e embalagens de tabaco estavam entre os
materiais que ele usou para criar sua colagem Copo, Garrafa de Vinho, Pacote de
Tabaco, Jornal. Havia, frequentemente, um relacionamento entre o material e o
objeto que ele representava.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ MATHIEU
'Violino' (1912) mostra como Picasso encontrou os materiais perfeitos em seus tesouros para criar suas colagens
Copiar e colar
Muito antes da reciclagem se tornar uma preocupação
ambiental, Picasso mostrou que havia beleza no lixo da vida cotidiana. Um
exemplo foram os restos de velhas unhas, pedaços de pano e barbante que ele
colocou em suas pinturas de violões. Ninguém daria pela falta do botão que
serviu tão perfeitamente como um buraco para seu Violão de Maio de 1926.
Picasso até criou do papelão um violão em três dimensões,
deixando a fita com a qual ele construiu a obra claramente visível.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ ADRIEN
Femmes à leur Toilette, de Picasso (1937-38), é uma colagem criada com papéis de parede recortados
Para muitos artistas, o papel era apenas um meio
preparatório, uma base sobre a qual poderiam elaborar ideias antes de
traduzi-las em tela ou bronze. Para Picasso, o papel não era apenas para
rascunho, nem simplesmente um meio para atingir um fim. Com Femmes à leur Toilette (1937-8), ele demonstrou a
eficácia da colagem em grande escala. Medindo 4,48 metros de largura, a colagem
é pintada com guache e apresenta pedaços de papel de parede colados na tela
para evocar o drama de uma cena doméstica. Mais tarde, Picasso olhou para Le Déjeuner sur lherbe
(1863), de Manet, e recriou suas figuras em papelão.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ MARINE
Na linogravura 'Le Déjeuner sur l'herbe d'après Manet' (1962), Picasso recriou as figuras da pintura original e as transferiu da tela para o papelão
Em suas formas, essas figuras remontam aos recortes de papel
que Picasso havia feito desde sua juventude.
A exposição em Londres apresenta um cão e um pombo que ele
parece ter recortado com perfeição do papel sem usar nenhum tipo de recurso
adicional já aos 8 ou 9 anos de idade.
Uma década e meia depois, ele ainda estava recortando formas
de papel, só que dessa vez eram um pouco mais ambiciosas — como uma lula, uma
pera e o traste de um violão.
FONDATION BEYELER, BEYELER COLLECTION, PETER SCHIB
Para Picasso, o papel não era apenas para esboços preparatórios, mas obras de arte completas - por exemplo, 'Mulher Sentada (Dora)' (1938)
Picasso sempre foi engenhoso. Seu desenho mais antigo que
ainda está intacto, o Toureiro Visto por Trás (1900), foi feito gravando e
aquecendo a base de uma saladeira de madeira.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Picasso precisou se
adaptar aos materiais e condições disponíveis.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ BÉATRICE
Picasso fez recortes de papel ao longo de toda a sua carreira, incluindo 'Cabeça de Mulher' (1962)
Era difícil encontrar materiais em Paris durante a ocupação
alemã, mas por trás das cortinas opacas de seu estúdio, Picasso fabricou, a
partir de seu estoque de restos, uma faca e um garfo, uma cabra, um pássaro,
luva, uma fileira de dançarinos e o mais surpreendente de todos, uma série de
caveiras, que ele também pintou.
Um guardanapo de papel queimado serviu para representar o
falecido cão branco da raça bichon de seu amor, Dora Maar. Não foi por acaso
que muitas dessas formas de guerra se assemelhavam a fantasmas.
Um guardanapo velho com buracos nos olhos pode não ter o
impacto imediato ou o apelo das Demoiselles d'Avignon ou La Vie. De fato, seria
fácil descartar grande parte das coisas efêmeras de Picasso como
insignificantes. O fato de ele ter se dedicado a manter, preservar e datar
com dia, mês, ano, às vezes até horário mesmo seus esboços rápidos no papel
indica que ele queria ser lembrado por muito mais do que suas obras-primas
acabadas. As pilhas que Picasso deixou para trás documentam sua
existência diária. São os pensamentos, os meios pensamentos, as distrações das
quais tantas de suas ideias cresceram.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51581465
Getty Images - Picasso na Villa La Californie, em Cannes: local era cheio de objetos
"Picasso disse certa vez: 'Você é o que guarda', e acho que ele tinha muito senso de posteridade", diz Ann Dumas, co-curadora da exposição Picasso e Papel. "Ele se preocupava muito com guardar e registrar as coisas, então acho que isso fazia parte de sua definição da própria identidade." Ele pegava os jornais e respondia às histórias publicadas neles fazendo desenhos a lápis ou tinta. Havia pouco, de fato, que ele não rabiscasse. Se uma folha de embalagem estivesse coberta por uma estampa ou texto, ele desenhava sobre ela. Sua própria obra se fundia com a gravura até que as duas mal se distinguissem. O efeito poderia ser cômico, como quando ele usou uma caneta tinteiro para desenhar sobre a fotografia de uma modelo da Vogue e estendeu as pernas dela para que saíssem por baixo do vestido de festa.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ MATHIEU
Auto-retrato (1918) a lápis e carvão está entre as exposições incluídas em Picasso e Papel na Royal Academy de Londres
Para muitos artistas, o caos significava criatividade e, em
seus tesouros, Picasso encontrou os objetos perfeitos para animar suas
naturezas-mortas. Seu amigo, o artista Georges Braque, geralmente é creditado
com a invenção da colagem moderna em Sorgues, ao norte de Avignon, em 1912. Mas
Picasso foi rápido em assumir a forma de arte.
Naquele ano, ele montou sua célebre Natureza Morta com a
Cadeira Caning, usando um pedaço de toalha de mesa para o assento da cadeira.
Sua genialidade era encontrar o objeto certo para cada espaço e manter a forma
enquanto perturbava o plano da imagem.
Em 1914, jornais e embalagens de tabaco estavam entre os
materiais que ele usou para criar sua colagem Copo, Garrafa de Vinho, Pacote de
Tabaco, Jornal. Havia, frequentemente, um relacionamento entre o material e o
objeto que ele representava.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ MATHIEU
'Violino' (1912) mostra como Picasso encontrou os materiais perfeitos em seus tesouros para criar suas colagens
Copiar e colar
Muito antes da reciclagem se tornar uma preocupação
ambiental, Picasso mostrou que havia beleza no lixo da vida cotidiana. Um
exemplo foram os restos de velhas unhas, pedaços de pano e barbante que ele
colocou em suas pinturas de violões. Ninguém daria pela falta do botão que
serviu tão perfeitamente como um buraco para seu Violão de Maio de 1926.
Picasso até criou do papelão um violão em três dimensões,
deixando a fita com a qual ele construiu a obra claramente visível.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ ADRIEN
Femmes à leur Toilette, de Picasso (1937-38), é uma colagem criada com papéis de parede recortados
Para muitos artistas, o papel era apenas um meio preparatório, uma base sobre a qual poderiam elaborar ideias antes de traduzi-las em tela ou bronze. Para Picasso, o papel não era apenas para rascunho, nem simplesmente um meio para atingir um fim. Com Femmes à leur Toilette (1937-8), ele demonstrou a eficácia da colagem em grande escala. Medindo 4,48 metros de largura, a colagem é pintada com guache e apresenta pedaços de papel de parede colados na tela para evocar o drama de uma cena doméstica. Mais tarde, Picasso olhou para Le Déjeuner sur lherbe (1863), de Manet, e recriou suas figuras em papelão.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ MARINE
Na linogravura 'Le Déjeuner sur l'herbe d'après Manet' (1962), Picasso recriou as figuras da pintura original e as transferiu da tela para o papelão
Em suas formas, essas figuras remontam aos recortes de papel
que Picasso havia feito desde sua juventude.
A exposição em Londres apresenta um cão e um pombo que ele
parece ter recortado com perfeição do papel sem usar nenhum tipo de recurso
adicional já aos 8 ou 9 anos de idade.
Uma década e meia depois, ele ainda estava recortando formas
de papel, só que dessa vez eram um pouco mais ambiciosas — como uma lula, uma
pera e o traste de um violão.
FONDATION BEYELER, BEYELER COLLECTION, PETER SCHIB
Para Picasso, o papel não era apenas para esboços preparatórios, mas obras de arte completas - por exemplo, 'Mulher Sentada (Dora)' (1938)
Picasso sempre foi engenhoso. Seu desenho mais antigo que
ainda está intacto, o Toureiro Visto por Trás (1900), foi feito gravando e
aquecendo a base de uma saladeira de madeira.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Picasso precisou se
adaptar aos materiais e condições disponíveis.
RMN-GRAND PALAIS, MUSÉE NATIONAL PICASSO/ BÉATRICE
Picasso fez recortes de papel ao longo de toda a sua carreira, incluindo 'Cabeça de Mulher' (1962)